sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Conto Gauchesco: "Truco de Mano".

Andavam roubando gado pras bandas de Santa Rita.

Por estes tempos eu changueava de alambrador na Estância da Ilha, de propriedade do doutor Próspero. Homem correto, respeitador, mandou me chamar no galpão onde à tardinha costumava matear com os outros peões campeiros. Decerto ouvira falar dos meus dotes de valentia. Na verdade, exageros que corriam de boca em boca dos dois lados das barrancas do Uruguai.

Pois pedia o doutor que eu montasse guarda na invernada, de tocaia aos maulas abigeatários. Um par de dias antes o capataz dera com os espólios de uma rês carneada ali mesmo, a uma ou duas léguas da Casa Grande. Outro problema, explicou o patrão, era que a invernada ficava ao lado de um corredor tido por assombrado pela peonada. Ninguém, por macanudo e taura que fosse, aceitava o encargo de tocaiar os bandidos.

Missão dada, missão paga – aprendi ainda em praça no Segundo Regimento João Manoel, aquartelamento de São Borja. Ademais, nunca fui de recusar serviço. E aquilo de roubar o gado alheio me botava fora das estribeiras. Por estas razões, aceitei o trabalho. Sem falar ao patrão dos desconfortos no peito, aqueles agulhaços que vinham puando o costado do coração há bem umas quantas semanas. Poderia parecer recusa. Ou, ainda pior, covardia. Em Livramento, certa feita, me disse um doutor que era mesmo o coração: tantos anos de palheiro e carne gorda um dia iam cobrar seu preço. E já não sou nenhum gurizote recém saído dos cueiros. Me receitou uma pastilhinha pra botar embaixo da língua quando o batedor começasse a corcovear. Mas, bueno. O fato é que escondi isso do patrão, dei de mão nos meus trecos e fui acampar na invernada.

* * *

Quem nunca passou uma madrugada de agosto a campo aberto na Campanha não sabe o que é sentir frio. O vento uiva nos ouvidos e parece que correm lâminas de gelo por dentro dos ossos. La pucha! Um índio tem que ser guapo pra agüentar o Minuano!

Naquele breu de fundo de campo, o poncho de lã correntina não dava conta de abater o frio. Logo de saída não quis fazer fogo: se minha missão era de tocaia, uma fogueira ali seria sinal de alerta. Mas lá pelas duas da matina, quando o Minuano gemeu com força e o frio tomou corpo, não tive alternativa: juntei uns galhos de Sarandi e ali no mais prendi a fogueira. Se por um lado eu revelava minha posição, por outro servia para intimidar a eventual presença dos bandidos. E, mesmo contra a recomendação do doutor de Livramento, abri uma branquinha de Santo Antônio pra aquecer a goela.

Não sei se foi o frio, a solidão, a canha. Só sei que começou de novo aquele puaço no peito, um aperto, um potro: coração redomão corcoveando, querendo rebentar a soga. O peso dos cinqüenta e pico de vida. Bem vivida, diga-se de passagem.

Foi antes de botar a tal pastilha na boca que ouvi os passos chegando perto, quebrando o pasto ressecado pela geada.

* * *

Ladrão de gado não podia ser: não seria tão burro de chegar assim de peito aberto, sujeito a levar um balaço. Tampouco ia se achegar solito. Pelas dúvidas, dei de mão no berro que trazia na guaiaca e me pus em guarda.

Louvado seja nossosenhorjesuscristo, disse de lá o vivente. Pra sempre amém, respondi de onde me encontrava, sem tirar os olhos do homem e a mão do trinta-e-oito. Oigalê, sujeito esquisito! Do chapéu de aba larga até o chão devia ter quase dois metros; magro como um pau de virar tripa; e branco! A pele parecia feita de leite, contraste com a noite escura que se realçava pelos fachos intermitentes da fogueira.

Se é amigo se achegue e tome um trago, emendei, fazendo questão de mostrar o cano da arma e de esconder o desconforto no peito. Ele tinha um semblante muito calmo, e foi logo sentando junto ao fogo. Disse que era um andante e vira o lume da fogueira. Que o frio estava de renguear cusco, e que nenhum gaúcho de verdade iria lhe negar o conforto do calor de um fogo. Hay ladrões de gado por estas bandas, expliquei, como a justificar minha presença naquele descampado. Respondeu que ouvira falar, andava de estância em estância atrás de serviço e numa ou noutra se comentava sobre isso, eu sabia como era.

Tinha uma charla buena o vivente. Àquela altura, cheguei a gostar de ter companhia numa madrugada gelada de agosto, num fundo de campo.

* * *

Os primeiros galos ainda não haviam começado sua cantoria quando o assunto foi mermando. A garrafa já quase se esvaziara, e a dor no peito agora era só um leve tirão.

Com naturalidade, o paisano meteu a mão na mala de garupa e dela tirou um baralho espanhol, as cartas reluzindo de novas: truco?

Por que não, respondi, afinal o caso era passar o tempo.

Antes de dar as cartas, fez uma pausa e falou num tom grave, pela primeira vez: não jogo às brincas.

Vale o quê?, perguntei. Não tenho plata, e do meu schimite não me desfaço, como qualquer mensalista de Missiones.

Não se apoquente, companheiro: não jogo por dinheiro, e na hora certa vosmecê há de saber o valor da minha aposta.

Botei aquelas palavras estranhas na conta da branquinha de Santo Antônio e topei a parada.

Na primeira volta o índio já botou Envido. Calavera, pensei. Mas este bagual aqui não foi criado campo fora por acaso, muito menos se criou na timba pra correr de chambão. Botei-lhe um Real Envido e a noite foi ficando linda!

* * *

Flor a Flor, Truco a Truco – o jogo ia parelho!

E dê-lhe Retruco e Vale-quatro!

Empardados nos tentos, chegou a última mão. Uma nesga de ferro em brasa no horizonte já anunciava que a noite vinha parindo o dia. E os galos.

Meu parceiro deu as cartas, em silêncio. Procurei em seu rosto qualquer traço de emoção, fosse por cartas buenas, fosse por cartas malas. Nada. O homem era uma campa.

Virou Bastos na amostra. La fresca! Olhei pras cartas que tinha comigo: três e cinco de Espadas; quatro de Bastos.

Nem esperei direito e já fui cantando

Su nombre no era Floduarda

Ní tampoco Florentina

Su nombre era Floribela

Ay, cuna! Que Flor de China!

e olhando com cara de vitória pro outro – uma Flor de 37! -, que não mexia um fio de cabelo. E então, esboçando um sorriso de leve, sibilou por entre os lábios: Contra-flor e o resto!

Aquilo decidia a partida! O jogo de maior valor ganhava a aposta, fosse ela qual fosse.

Cartas no chão, contamos os pontos. Ele tinha o Perico, um seis e um quatro de Ouro: 37 pontos!

Foi de mano!

Trinta e sete a trinta e sete!

Ganhaste na regra do jogo, ele me disse depois de um pequeno momento de reflexão. Apertou minha mão num cumprimento formal – e foi quando percebi que sua pele era ainda mais fria que o vento da madrugada.

Depois, como se nunca estivesse andado por ali, virou as costas e foi embora.

* * *

De manhãzita retornei à estância.

Rebuliço da peonada no galpão.

Aos atropelos, me contaram dos corpos achados perto do açude, ainda quentes. Eram os ladrões de gado: estranho era que não tinham marcas de bala ou faca, nem mesmo de qualquer tipo de violência. Mortos, apenas.

Então entendi a aposta que tinha ganho algumas horas antes.

E nunca mais senti dor alguma a corcovear no peito.

Marcelo Davila.



Patrique Severo @patriqsevero


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